O que o consumo de combustível na Fórmula 1 nos ensina sobre eficiência e o futuro da energia
- Fala Driver´s
- há 2 dias
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É interessante observar o modo como o ser humano mede inteligência. Às vezes é pela velocidade. Outras, pela economia. Mas em poucas situações essas duas exigências caminham juntas.
A Fórmula 1 é uma delas.
Enquanto um carro de passeio, como um Honda Civic 2024, percorre 2.700 km com 130 litros de combustível. Um carro de Fórmula 1 usa a mesma quantidade para completar uma corrida de 300km. Na linguagem crua dos números, isso é ineficiência. Mas como em quase tudo na vida — da psicologia ao motor — os números não contam a história toda.
Já vale saber de início que os carros de F1 não foram projetados para economizar combustível, e sim para extrair o máximo de energia possível de cada gota.
O que realmente acontece dentro deles é uma aula de engenharia, tomada de decisão e, por incrível que pareça, ética.

Um motor V6 turbo-híbrido de F1 opera a 15.000 rpm, gerando cerca de 1000 cavalos de potência. Para contextualizar: seu carro de rua funciona entre 800 e 6.000 rpm. A diferença está na intensidade da combustão.
Cada explosão no cilindro acontece com timing de microssegundos. O motor queima combustível em condições extremas de temperatura e pressão - condições essas que destruiriam um motor convencional em minutos.
110kg, nada mais
Esse é o limite. Cada carro de Fórmula 1 tem à disposição no máximo 110 kg de combustível por corrida — aproximadamente 130 litros de uma gasolina altamente refinada, densa, complexa, desenvolvida sob medida. É o suficiente para 305 quilômetros em média. Mais do que isso e o carro estaria ilegal, podendo ser desclassificado de um Grande Prêmio. Menos do que isso, e o piloto não terminaria a corrida.
Os regulamentos limitam o uso a 110 kg por corrida, mas as equipes raramente usam tudo. A razão é estratégica: cada quilograma extra no carro custa décimos de segundo por volta. As equipes calculam meticulosamente o consumo por volta em cada circuito, a velocidade perdida pelo peso extra, e identificam os momentos para economizar versus os momentos para atacar.
Um piloto pode economizar 10-15% de combustível em trechos específicos da pista, liberando essa energia para ultrapassagens ou defesas.
Mas o consumo aqui não é linear. Nas primeiras voltas, o carro carrega todo esse peso extra, e cada curva exige mais força. Ou seja, quanto mais tempo se passa correndo, mais combustível se gasta, o que é um alívio no cronômetro. A cada 10 kg a menos de combustível, o tempo de volta melhora cerca de 0,3 segundos.
Além disso, o circuito em si interfere diretamente:
Spa-Francorchamps: cerca de 1,8 kg de combustível por volta, devido às retas longas e acelerações intensas.
Mônaco: aproximadamente 1,2 kg por volta, por conta das curvas fechadas e velocidade média mais baixa.
Em altitude elevada, como no México, o ar rarefeito exige ajustes no mapeamento do motor, já que há menos oxigênio disponível — o que afeta o desempenho e o consumo.
Temperaturas acima de 30°C também aumentam o esforço de resfriamento do motor e dos sistemas híbridos, podendo elevar o consumo em até 8%.
O consumo alto tem causas específicas que começam com a potência extrema necessária para mover 798 kg a velocidades que desafiam a física. A aceleração de 0-100 km/h em menos de 3 segundos demanda picos de energia que um motor convencional simplesmente não consegue produzir. Manter velocidades superiores a 300 km/h requer vencer a resistência do ar, que cresce exponencialmente com a velocidade — dobrar a velocidade significa quadruplicar a resistência. Além disso, essa performance deve ser mantida por duas horas de operação contínua em máxima intensidade, sem paradas para resfriamento ou manutenção.
Quando falamos em eficiência na Fórmula 1, não estamos falando de gastar menos. Estamos falando de fazer mais com o mesmo — ou, no limite, com menos.
Os motores atuais da F1 — chamados de Power Units — são um conjunto híbrido extremamente sofisticado. Eles combinam um motor a combustão V6 1.6 turbo com sistemas elétricos de recuperação e redistribuição de energia, como o MGU-K (que aproveita a energia das frenagens) e o MGU-H (que aproveita o calor do turbo, embora este esteja com os dias contados e sairá em 2026).
Esse conjunto atinge hoje algo que pouquíssimos sistemas no mundo alcançaram: mais de 50% de eficiência térmica. Ou seja, mais da metade da energia presente no combustível é convertida em movimento. Só uma comparação:
Motores a gasolina de rua: 25 a 30%
Motores a diesel de última geração: até 45%
Fórmula 1, com gasolina: acima de 50%
Mesmo consumindo muito, um carro de F1 converte mais energia útil por litro queimado do que qualquer carro de rua.
A fórmula do combustível
Os carros da F1 não usam gasolina comum, mas sim uma mistura desenvolvida com rigor técnico, dentro de regras definidas pela FIA. Desde 2022, os combustíveis devem conter pelo menos 10% de etanol de origem renovável.
Há também critérios como:
Densidade entre 0,720 e 0,775 kg/litro
Octanagem mínima de 95 RON (podendo ultrapassar 100)
Composição química livre de aditivos não permitidos
Cada equipe trabalha em parceria com fornecedores como Shell, ExxonMobil ou Petronas para desenvolver uma composição que maximize a eficiência e reduza perdas térmicas e fricção interna.
Não é exagero dizer que a “gasolina” da F1 é um projeto de engenharia por si só e que se desenha para alcançar a meta de carbono zero até 2030.
Em busca de neutralidade de carbono, a Fórmula 1 dará um passo importante já em 2026, sendo as principais mudanças:
Fim do MGU-H
MGU-K mais potente: passando de 120 kW para 350 kW (quase 470 cv de potência elétrica)
Uso obrigatório de combustível 100% sintético e neutro em carbono
Esse novo combustível será produzido a partir de CO₂ capturado da atmosfera, combinado com hidrogênio verde, criando um ciclo fechado: o carbono emitido ao ser queimado é o mesmo que foi retirado durante sua produção.
Essa tecnologia, se funcionar em alta performance na F1, poderá ser adaptada para aviação, transporte marítimo e até mesmo em setores industriais que ainda dependem de combustíveis fósseis.

A eficiência desenvolvida na F1 já chegou aos carros de rua através de tecnologias como injeção direta de combustível, turbocompressores de geometria variável, sistemas de recuperação de energia, e controle eletrônico de combustão. A Mercedes-AMG One, carro de rua com motor derivado da F1, consegue 8,17 litros/100km - impressionante para 1063 HP.
A Fórmula 1, com todos os seus excessos, talvez seja hoje o espaço mais comprometido com o futuro da eficiência energética — e o mais ousado ao testar os limites do que ainda é possível fazer melhor.
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